Quando, em Setembro de 2014, Tim Cook lançou o saudoso iPhone 6, já tinha corrido praticamente uma hora do evento de apresentação, indiciando que as cortinas iam fechar perante um tão refrescante modelo do smartwach da Apple.
Só que não. Imbuído pelo estilo de Steve Jobs, Cook disse que não tinham terminado: "we have one more thing". E eis que as nossas fantasias de criança se concretizaram! Não estou a falar da atuação dos U2 no fim do evento. Falo do Apple Watch.
E tudo a Apple levou?
De uma forma ou de outra, os filmes de ficção científica incluem sempre um dispositivo de comunicação acoplado ao nosso corpo. Muitos deles no pulso. Em 2014, a Apple trouxe ao mundo um que, de modo absolutamente fluído, assumiu um papel transformativo na vida quotidiana.
Sim: fluído, tal como a Apple, quando quer, sabe fazer. A continuidade não intrusiva do iPhone, que nos trouxe a Siri, a música, o telefone e tantas outras funcionalidades para o pulso, num formato talvez não apreciado por alguns, mas definitivamente aprovado pela maioria.
E eis que, no dia 12 de Setembro de 2017, aquando do lançamento da terceira série do Apple Watch, Tim Cook anunciou que as vendas do relógio da maçã ultrapassaram as da famosíssima marca suíça Rolex (símbolo supremo de luxo e qualidade suíça), assumindo o primeiro lugar no mercado dos relógios.
E lá começou mais uma corrida, porque é assim mesmo que funciona o mercado. De acordo com o website Statista, a Apple fez sair das suas fábricas "30,7 milhões de relógios [em 2019], ultrapassando toda a indústria relojoeira suíça, que se estima ter enviado 21,1 milhões de relógios durante o mesmo período".
Como ficaram os suíços?
Durante a minha juventude, não havia ninguém que não quisesse ter um Swatch. A marca foi, aliás, tão bem sucedida que, por exemplo, em Portugal, para além de ter exemplares em praticamente todas as ourivesarias que vendiam relógios, abriu quiosques de vendas em centros comerciais. Lembro-me bem quando o (agora semi-defunto) centro comercial do estádio do Sporting abriu, lá estava um quiosque da Swatch.
Durante esse radioso final do século XX, a Swatch chegou inclusivamente a lançar um telefone para chamadas fixas sem fio e, claro, quem não conhece o automóvel Smart, resultado da brilhante parceria entre a marca suíça e a Mercedes-Benz?
Sendo que o Grupo Swatch detém marcas como a Logines, Omega, Tissot, Certina, Hamilton, Breget, Blancpain e muitas mais, se juntarmos as restantes, de que são exemplo a Rolex, a Cartier (que embora sedeada em França, fabrica os seus relógios na Suíça), entre outras, saber que a Apple ultrapassou as vendas de todos estes em conjunto, poderia indiciar o início do fim da indústria relojoeira deste país com a bandeira da cruz grega branca.
Cada macaco no seu galho
Aparentemente, parece que não. Muito embora as opiniões divirjam, a estatística não engana: existe a era pré e pós Apple Watch. Em termos de quantidade parece não haver dúvida - a própria indústria suíça reconhece isso: o volume de vendas baixou drasticamente.
Mas como disse Jean-Claude Biver, uma das maiores referências da indústria relojoeira, "tivemos uma crise estrutural nos anos 1970, que foi o quartzo, e o quartzo tornou os nossos produtos obsoletos", afirma. "A [segunda] crise que acabámos de atravessar [referindo-se ao advento do Apple Watch] não tornou os nossos produtos obsoletos; o que aconteceu foi que o cliente não comprou".
Biver virou-se então para o marketing, convertendo uma fraqueza numa força, orientando-se, por um lado, para as gerações mais jovens e, por outro, para classes sociais que não são afetadas pelas crises económicas.
Com efeito, não é preciso vender mais unidades que a Apple. Os preços dos relógios suíços são absolutamente exorbitantes e, enquanto mantiverem a sua carga simbólica, não desaparecerão de cena.
Biver afirmou inclusivamente que o Apple Watch voltou a chamar a atenção para os relógios de pulso, permitindo um reposicionamento da indústria relojoeira suíça enquanto criadora de obras de arte mecânicas detentoras de um estatuto de artigo de luxo muito mais incidente.
No artigo intitulado "Why the Apple Watch is a Gift to the Swiss Watch Industry" (Harvard Business Review, 2014), redigido pelo professor Ryan Raffaelli , pode ler-se que "a maior parte do crescimento meteórico da indústria relojoeira suíça nas últimas duas décadas foi proveniente de relógios com preços bem acima de 10.000 dólares. A indústria relojoeira suíça já não compete nas mesmas dimensões que impulsionaram as vendas do Apple Watch."
E no futuro?
São cada vez mais as marcas suíças que começam a criar híbridos nos tempos que correm. Não se pode negar a evidente tendência para, por um lado, querermos deixar de estar sempre agarrados ao telefone, e por outro, termos sempre à mão um dispositivo com capacidade para nos salvar a vida, quer através de medições constantes do nosso ritmo cardíaco, oxigénio no sangue, etc., quer por ser capaz de ligar para o 112 e/ou para um contacto previamente selecionado em caso de queda ou acidente.
A título de exemplo, é certo que os grandes ícones desportivos ainda ostentam orgulhosamente os seus relógios suíços cheios de pedras e metais preciosos, que todos sabemos serem um dos inúmeros exemplares espalhados pelas suas casas.
A estes relógios, que simbolizam um desejo de afirmação orientado para pertença a um estatuto social elevadíssimo, juntam-se as malas e mochilas Louis Vuitton, ténis Gucci e, claro, iPhones.
Enquanto assim for, a indústria suíça não terá muito com que se preocupar. Basta aumentar o preço dos relógios e manter esta imagem de que são poucos os que podem ter acesso à sua produção.
Qualquer pessoa pode ter um Apple Watch (ou outro smartwatch). Já um Tag Heuer, nem tanto. Até quando? Veremos. O facto é que parece que os relógios suíços ainda cá estão para ficar, e, vá... ainda bem. O mundo analógico ainda tem muito para dar e, para quem quiser, ainda há muitas marcas como a Timberland, por exemplo, que são bastante acessíveis para a classe média.
Tenho e adoro um Apple Watch. Mas sinto que, esteticamente, nada se compara com um belíssimo relógio analógico. A dada altura decidi que prefiro sacrificar a estética pelas funcionalidades e entretenimento que um smartwatch me pode dar. E tu? Perante esta dualidade, para onde te inclinas?
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