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Da internet para o jornal: a campanha de fake news do Facebook
Marcus Mendes

Da internet para o jornal: a campanha de fake news do Facebook

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Uma das maiores dificuldades de escrever sobre um tema complexo é não saber por onde começar. Abres a crónica com a parte errada da história, e perdes os leitores imediatamente. Demoras muito para chegar ao ponto principal, e perdes o público pelo caminho. Nos últimos dias, a briga que o Facebook tem vindo a comprar com a Apple trouxe-me exatamente este problema. Por onde começar?

“Pois comecemos pelo início!” seria a solução mais óbvia, certo? Errado. Esta briga tem tantos começos, que seria melhor garantir e começar pelo Big Bang.

Mas vamos lá.

Nos últimos dias, o Facebook tem veiculado anúncios de página inteira em importantes jornais americanos a criticar a mudança (e a intensificação) da privacidade no iOS. Especificamente, o Facebook não está feliz com a perspectiva de ser impedido de nos rastrear entre sites e aplicações (mesmo no caso de pessoas iguais a mim, que não possuem uma conta no Facebook) para, em seguida, utilizar essas informações para vender publicidade micro-direcionada nas suas plataformas e web fora.

O argumento do Facebook é que, sem a possibilidade de nos rastrear de forma tão detalhada, os anunciantes serão impossibilitados de falar exatamente com o público que eles querem atingir. Mais do que isso, esta mudança causará uma redução tão grande nas vendas e no faturamento dessas empresas, que elas ficarão à beira de um abismo financeiro.

Num segundo anúncio, o Facebook defende que o aumento da privacidade no iOS resultará no fim do acesso gratuito a conteúdos na internet, já que os portais precisarão de passar a cobrar aos seus leitores em troca do acesso como consequência da redução na quantidade de anunciantes.

Eu não sei que tipo de pessoas o Facebook espera convencer com esses argumentos, mas imagino que não sejam muitas. Ao veicular essas mensagens, o Facebook apenas está a chamar ainda mais à atenção para um facto verdadeiramente indisputável: ele só consegue proporcionar um direcionamento tão preciso de publicidade (e tão mais preciso do que todas as outras plataformas online) porque faz isso de uma forma injusta. Esses textos são a admissão do Facebook de que se forem obrigados a aderir às mesmas regras do resto do mercado, que conhece e respeita os limites da ética, ele estará perdido.

O argumento é o mesmo de um motorista que foi parado pelo guarda de trânsito, e tenta argumentar que sempre entrou em contramão naquela rua para economizar tempo, e por isso não faz sentido a partir de agora ele ser obrigado a respeitar as leis de trânsito e dar a volta no quarteirão para chegar ao destino dele.  Se o Facebook sabidamente sempre argumenta que “Eu faço errado, mas o concorrente X também faz”, desta vez ele apenas diz que “eu sempre fiz errado, então não deveria ser obrigado a fazer certo”.

No seu texto transparentemente covarde, o Facebook alega que os pequenos negócios irão perder até 60% de faturamento com o fim da possibilidade de veicular publicidade micro-direcionada no Facebook. Mas se essa possibilidade existia até hoje apenas como resultado das práticas deploráveis de espionagem que o Facebook vem empregando há anos, será que a culpa não é dele que o resultado do aumento da privacidade (que, vale lembrar, ele é o principal causador) é o fim do seu modelo de negócios atual?

Um dado que o Facebook não comenta no seu texto é a projeção de que o império do Zuck irá perder muito mais do que 60% em faturamento caso ele realmente seja obrigado a aderir às regras que o resto do mercado segue para ganhar dinheiro de forma justa.

E que fique claro: não é apenas o Facebook que se beneficia de práticas assim. Mas é inegável que de todos os réus, ele é de longe o pior.

E o mais triste dessa situação é que todos já sabemos qual será o script: o Facebook seguirá fazendo o seu barulho, seguirá tentando incomodar a Apple (com manobras como a que ele emplacou com a Epic Games, ao prometer que ajudará a Epic nos processos contra a Apple), a Apple por sua vez não mudará de ideias e irá implementar as mudanças que aumentarão a nossa privacidade, e em resposta a isso o Facebook não tardará para sair à procura de novas formas de contornar essas novas regras para voltar a explorar a nossa privacidade da mesma forma inescrupulosa e nojenta que ele sempre fez.

A diferença é que agora ele sabe que essas opções estão a esgotar-se. Ele próprio já voltou a anunciar em jornais, não é mesmo?

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Crónicas