A prisão sem grades nas janelas
Joana Cabral

A prisão sem grades nas janelas

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Era muito nova quando tive o meu primeiro dispositivo Apple. Possivelmente, demasiado nova até, a tentar pôr as músicas ripadas de um CD como me havia habituado a pôr num MP3 no meu novo iPod Nano.

Lembro-me de ser confuso para mim, na minha ainda infância, ter de instalar outro programa para passar músicas para um dispositivo de música, quando era algo que antes de ter aquele iPod fino na mão, lindo de ver, não me oferecia qualquer tipo de dificuldade.

Nunca teria hipótese de saber que, a instalar aquele programa que parecia tão pesado chamado "iTunes", que ia ser a minha porta de boas vindas para um mundo completamente diferente do que estava habituada até então.

Apesar da estranheza, apesar daquele tempo em que tens de te habituar, o mundo da Apple é viciante mal entras nele.  Porque percebes que, apesar daquela dificuldade a passar as músicas para um iPod, funciona de maneira completamente diferente que qualquer MP3 que havias usado antes. Porque percebes que, não encontras algo tão limpo de olhar em qualquer outro dispositivo. Porque, antes de fazer seja o que for, já na altura, crias uma identidade neste novo mundo para todos os teus dispositivos, despesas, experiências nele.

Percebes que, acima de qualquer programa pesado num computador do século passado, preferes ter o esforço para poder ter a tua biblioteca toda organizada, para ter aquela experiência de som que não tinhas em qualquer outro. Percebes que há coisas que não pensavas preferir até ter oportunidade de experienciar algo a outro nível.

Quando estás satisfeito com algo – com um produto neste caso –  é mais que natural no ser humano ir pelo mesmo caminho que anteriormente o deixou satisfeito. E se calhar, é aí que, quando pensas em trocar de computador, de telemóvel, percebes que preferes juntar mais uns trocos (na altura, a diferença não parecia tão grande na minha cabeça) e ficar numa marca que te surpreendeu pela positiva. Em que te deram um nome. Começas a ver dispositivos novos, que parecem tão futuristas nos tempos que correm, que não resistes em ver o alarido, em ver como funcionam.

Nesta altura, quando falam em "ecossistema da Apple", não vês o problema. Porque as coisas fazem sentido. Porque os dispositivos se encaixam na tua vida, no teu quotidiano, de uma forma tão simples, tão natural, que é impossível pensar nisso como uma coisa má.

Tu gostas de estar no ecossistema. Gostas de estar na bolha feita tão delicadamente como a pensar puramente na tua utilização, que não faz sentido pensar sequer em sair.

O conto de fadas começa sempre cor de rosa. A história é sempre bonita até chegarem os "Mas".

"Mas o iPad não me deixa guardar documentos", "Imagina instalar um navegador tem mais anúncios que espaço de ecrã para poder descarregar um ficheiro". Ok, se calhar nunca sentiste esta em particular, mas creio que algo transversal é que, em algum momento, em algum aspeto, a experiência não é tão perfeita como a tinhas idealizado.

Até te deixas entusiasmar e levar novamente quando em setembro cai tão religiosamente a notificação para instalares um novo iOS, que até te dá por vezes a sensação de ter comprado um dispositivo novo. Se calhar ignoras por uns tempos, porque são pormenores chatos, mas até arranjaste forma de dar a volta à situação, ou até decides que os anúncios no tal navegador que não inspira confiança não são assim tão maus.

Se és alguém como eu, que está no mundo Apple há uns anos, é possível que já tenhas tido estes momentos.

É muito possível até que, como eu, tenhas decidido deixar, pelo menos em parte, este ecossistema que tanto primaste antes, a tentar colmatar a frustração que sentiste em não poder fazer algo tão simples que sempre viste outros, fora da Apple, fazer.

Porque a verdade é que nunca páras de ver o que acontece fora do ecossistema. Preferes estar dentro dele, mas sabes que aquele telemóvel novo da Samsung até faz algo extraordinário que nunca conseguiste fazer no teu iPhone. Se calhar até ficas chateado/a porque vês algo no Android, ou outro dispositivo tão fácil de implementar que pensas "era tão simples assim!". Não gostas menos de uma marca por conseguires olhar para outra e apreciar algo que conseguiram fazer – podes preferir algo e mesmo assim reconhecer mérito noutras quando o fazem bem.

E se calhar, então, nesse pensamento, por vezes, fazes a mudança.

Creio que qualquer um de nós, pensando de uma forma objetiva, estaria bem servido com um dispositivo topo de gama. Porque eles fazem por merecer esse nome. Porque contam com o melhor que a sua fabricante tem a oferecer. Não tens uma má experiência com nenhum deles. Abres a caixa, e até ficas contente com os acessórios que encontras. Alguns até já trazem uma capa transparente, que agradável. E aquela funcionalidade nova que parece tão futurista, hein? E o zoom que parece não ter fim?

E, se calhar, já consegues fazer tudo pelo navegador padrão, até tens aquela aplicação que os teus amigos usam que não aparecia na App Store, até compras um dispositivo com especificações proporcionais ao dispositivo que tinhas mas a um preço muito mais simpático. Aquelas coisas que pareciam tão simples e não as podias fazer no teu iPhone ou iPad? Suspiras satisfeito, finalmente estão nos teus dedos.

Mas – eu disse, há sempre um "Mas", e decerto que tu terás os teus – a caixa não te deu o mesmo gosto a abrir. O cheiro a desembrulhar o dispositivo parecia ser diferente. Não tinhas as tuas palavras-passe todas sincronizadas mal iniciaste a tua sessão, nem os teus separadores guardados. Não tinhas nenhum número de telefone a aparecer. Quando recebias mensagens, já não recebias em simultâneo em todos os teus dispositivos. E aquele amigo que tinha iMessage, por onde é que falo com ele agora?

Caramba, tem de ser uma questão de hábito, não?

E é. Efetivamente é uma questão de hábito. Pelo menos, em parte. Porque, depois dessa curva educacional, quando tens tudo tão bem ou melhor (uma vez que o fizeste do zero) sincronizado no dispositivo novo, quando esses pormenores banais, chatos, parecem ultrapassados,... Continuam a fazer falta de alguma forma.  Porque parecia mais simples, com menos complicações...

Olhas de fora para o ecossistema, da vista que costumavas ver lá dentro. Já não estás preso às limitações que tinhas, que te impunham. Mas sentes falta. Da sincronização, da simplicidade, de não ter que pensar sequer em certas ações, porque parece que desde a altura que criaste a conta no iTunes em pequena, a conta e o sistema têm crescido contigo.

É legítimo voltar.

Mas com a noção do que se está a trocar.

Com a noção que escolhes abrir mão de coisas úteis para ti, porque o ecossistema que tanto te incomodou, faz-te agora falta de alguma forma.

Nunca foste obrigado a ficar. Saíste, porque quiseste, da mesma forma que voltas, porque quiseste.

Compras um Apple Watch.

Compras os novos AirTags.

Porque é o passo lógico seguinte na integração dos teus dispositivos. E porque é um ecossistema delicioso de desfrutar.

Mas.

Com a noção que, se o teu iPhone te falha, e não tiveres possibilidade de comprar outro, ficas quase com um pisa-papéis em casa, ao não ter utilidade para ele.

Com a noção que, querendo continuar a utilizar, serás obrigado a comprar um iPhone novamente.

Será justo chamar uma prisão a algo que és livre de sair?

A algo onde te sentes bem em estar?

Tens o teu livre-arbítrio na escolha, mas será que perdes liberdade?

Ficas pelo dispositivo, ou ficas pelo ecossistema?

Do ponto de vista de marketing, do ponto de vista de satisfação, não creio que ninguém possa chegar aos calcanhares da Apple. A forma como o seu ecossistema foi construído é mesmo a pensar em manter os utilizadores. Porque construíram o castelo perfeito. Em que tudo brilha, em que tudo está interconectado, e faz todo o sentido dessa forma.

Porque construíram o castelo com as maiores janelas, em que vês o que se passa no jardim e até achas piada, mas preferes ficar sempre dele. Até chegaste a ir até lá, mas voltaste seduzido pela melodia a encantar-te no castelo. A decisão nunca deixou de estar do teu lado. Mas a escolha é tão atraente assim.

Não és proibido de ir para o jardim. Mas sabes que é no castelo em que tudo simplesmente funciona. E deixas-te ficar no castelo. Se calhar às vezes querendo sair, seja por que motivo for, mas acabas por ficar, a exercer o teu livre-arbítrio. No castelo com as janelas lindas, em que tudo é harmonioso, em que tudo funciona, com as suas falhas e limitações, que vês resolvidas no jardim, mas que deixa de fazer sentido ires lá para fora por elas.

O castelo não tem grades nas janelas. Mas, por vezes, pergunto-me, se é uma prisão sem grades nas janelas a crescer disfarçado de castelo.

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Opinião