Existem alguns eventos no mercado corporativo que parecem seguir um script imutável, e pré-definido há décadas. Coisas como “passar mais tempo com a família”, por exemplo, geralmente significam “fui demitido”. Já declarações como “agradecemos a Fulano por tudo o que ele fez na empresa” na realidade quer dizer “há tempos que ele já não vem a acrescentar muito”.
No caso de Jony Ive, o script adotado foi o padrão quando uma empresa quer acalmar os investidores: “Enquanto procura projetos pessoais, Ive na sua nova empresa seguirá a trabalhar de perto e numa variedade de projetos com a Apple”. Tradução: nada disso é verdade, mas nós vamos dizer que é, e o mercado vai fingir que acredita. Nem mesmo o título da demissão de Jony Ive anunciou a sua demissão, mas sim a “formação de uma empresa de design com a Apple como cliente”.
Como sabemos e até voltou a ser discutido recentemente, o processo de demissão de Ive iniciou-SE, na verdade, com o falecimento de Steve Jobs. Ele intensificou-se com os atritos sob o novo estilo de liderança de Tim Cook, comprovou-se com a decisão de passar parte das responsabilidades de Ive para Evans Hankey e Alan Dye, e culminou com o anúncio maquilhado da sua saída em junho de 2019.
E apesar de todo o respeito que Ive merece, e tudo o que ele contribuiu para a história da Apple e da computação em geral, é praticamente impossível encontrar um produto (ou uma linha inteira de produtos) da Apple que tenha ficado pior de lá pra cá. O destaque, claro, é a linha de MacBooks. Sob a liderança de Evans Hankey, o teclado voltou a funcionar, e a conectividade com múltiplos acessórios deixou (parcialmente) de ser um problema. E analisando de modo geral, os produtos da Apple abandonaram a finura a todo custo, em detrimento da bateria e da experiência do utilizador. Hoje, tanto iPhones quanto Macs estão mais espessos, mais pesados, e ninguém acha que são piores por isso.
Já a parte do design de software é outra história. Nos últimos anos, sob a liderança de Alan Dye, a experiência de software do macOS e iOS parecem estar sempre à beira de um desastre. A fixação de Dye por esconder elementos de interface por trás de botões e menus de difícil acesso (alô, app de E-mail) tem tornado a tarefa de conviver com apps nativas da Apple algo cada vez mais difícil. Enquanto Evans Hankey se mostra uma talentosa herdeira do talento de design de hardware de Jony Ive, Alan Dye mostra-se ainda mais aquém da responsabilidade que o próprio Ive não assumiu com muito sucesso desde a saída de Scott Forstall.
De qualquer das formas, é inegável a influência de Ive em quase tudo o que vemos e tocamos no mundo da tecnologia (e além). O próprio Nothing Phone (1) dificilmente existiria desta forma, se não fosse o lançamento do iMac G3 há mais de duas décadas. A Google e Microsoft dificilmente teriam adotado as suas linguagens atuais de design, se não fosse o temporariamente catastrófico abandono do skeuomorfismo em prol do minimalismo estético do iOS 7.
No meio disto tudo, Jony Ive evoluiu da mesma forma que os grandes mestres do design evoluíram. Não é um exagero Dieter Rams, Philippe Starck, Stefan Sagmeister, Frank Gehry, Le Corbusier e tantos outros, cada um no seu próprio campo de atuação, transcenderam as suas ocupações práticas, como design e arquitetura, e tornaram-se referência de conceitos de design que mudaram a história da humanidade. Outro nome dessa lista? Marc Newson, sócio de Jony Ive na empresa LoveFrom. Antes mesmo de deixar a Apple, Ive vinha a colaborar com Newson em projetos paralelos. E enquanto Newson fazia o que bem queria além desses projetos, Ive estava preso a desenhar computadores, tablets, relógios, smartphones e afins. Não é nenhum mistério entender como os produtos da Apple foram tomando caminhos cada vez mais abstratos em relação ao seu propósito original, exatamente da mesma forma que grandes designers decidiram, um dia, reinventar o significado de uma cadeira. Ou de um carro.
Mais do que não surpreender, o fim da relação entre Jony Ive e a Apple sequer chega a ser uma notícia muito relevante. A sua saída, na realidade, já havia acontecido muito antes da oficialização em 2019. E hoje em dia, todos – incluindo Ive – estão melhores assim.
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