Na semana passada, exatamente no momento em que eu escrevia a crónica sobre as inevitáveis mudanças no horizonte para a App Store, a Epic Games e a Apple envolveram-se no que até ao momento é uma das maiores polémicas tecnológicas de 2020.
Aliás, dizer que a Epic Games e a Apple se envolveram numa polémica não é a forma mais precisa de descrever o problema. Foi a Epic Games que, a 13 de agosto, deu início a uma verdadeira campanha de ataque contra as regras da App Store e da Play Store, com proporções inéditas para este mercado.
Se és a única pessoa do mundo que ainda não sabe o que aconteceu, eu explico: naquela manhã, o Fortnite ganhou um método alternativo de pagamentos, por fora da App Store e da Play Store. A Epic Games alterou o jogo remotamente (ou seja, sem passar pela aprovação da Apple e do Google) e adicionou um sistema próprio de pagamentos que oferecia 20% de desconto em relação às compras feitas via Play Store e App Store.
No press release anunciando a novidade, a Epic Games foi bastante clara ao dizer que “Atualmente, ao utilizar as opções de pagamentos da Apple e do Google, as duas empresas cobram uma comissão de 30%, então o desconto de 20% não se aplica. Se a Apple ou a Google reduzirem essas taxas no futuro, a Epic repassará essa economia para si”.
Num parágrafo, a Epic Games revelou a real intenção da novidade: cutucar publicamente a Apple e a Google, dizendo que os jogadores estavam a pagar mais caro por causa delas.
Aliás, não demorou muito para todos percebermos que este cutucão, na verdade, havia sido recebido como um verdadeiro soco no baço. A Apple removeu o Fortnite da App Store e, imediatamente em seguida, a Epic Games divulgou um vídeo criticando a decisão da empresa, publicou o documento da abertura de um processo contra a Maçã e tentou emplacar a campanha #FreeFortnite nas redes sociais.
A rapidez com a qual a Epic Games reagiu em todas essas frentes não deixou dúvidas de que tudo isso havia sido premeditado e orquestrado, apoiado na previsibilidade da reação da Apple e da Google (que também removeu o Fortnite da Play Store e também virou alvo de um processo aberto pela Epic).
O que veio a seguir foi uma sequência de ataques públicos que seguem acontecendo até agora. A Apple chamou a Epic Games de irresponsável, a Epic Games acusou a Apple de monopólio, a Apple prometeu banir completamente a Epic Games do Programa de Desenvolvimento em 28 de agosto e, aparentemente, a resposta da Epic Games foi um silencioso “duvido).
No meio disso tudo, tão previsível quanto as reações das duas empresa, foi a reação do público. A natureza tribalista humana fez com que fãs do Fortnite e fãs da Apple rapidamente entrassem em conflito, o que só teria sido mais tematicamente apropriado se o embate estivesse a acontecer numa ilha onde só restaria um participante vitorioso.
E eu até entendo essa necessidade de defender “a própria equipa”. Parafraseando algo que li uma vez (cujo autor infelizmente não me lembro): quando alguém toma uma marca ou uma empresa como parte da própria personalidade, qualquer crítica vira um ataque pessoal.
Particularmente, vejo duas empresas gigantes a tentar ficar com a maior fatia possível do bolo ao mesmo tempo que buscam jogar a opinião pública uma contra a outra. Enquanto a Epic Games fala sobre monopólio, defende o poder de escolha dos utilizadores e deixa de lado o facto de que ela própria quer colocar uma loja de aplicações no iOS e no Android cobrando 12% de comissão dos desenvolvedores sem precisar repassar nada para a Apple e para a Google, a Apple fala sobre segurança, privacidade e insiste no incompreensível argumento furado de que se não fosse pelo iPhone, o Fortnite não seria o Fortnite.
Uma coisa que está cada vez mais clara é que nós estamos a testemunhar a erupção de uma conversa que provavelmente vinha a acontecer há muito tempo nos bastidores. Assim como a Epic Games não foi apanhada de surpresa com o banimento da Play Store e da App Store, a Google e a Apple certamente não foram apanhadas de surpresa com a manobra bélica da Epic Games. A desenvolvedora de jogos muito provavelmente vinha a tentar negociar o pagamento independente sem muito sucesso, e calculou que no longo prazo seria melhor ela dar início a essa briga e potencialmente causar uma mudança nas lojas do que seguir abrindo mão de 30% do faturamento que ela gera sozinha para as empresas.
É de se admirar a coragem da Epic Games em comprar essa briga, é claro, porém o real custo para ela até agora tem sido mínimo: o Fortnite continua funcionando perfeitamente nas centenas de milhões de celulares em que ele já estava instalado, a compra interna direta “clandestina” continua funcionando em todos esses aparelhos, e o numero de jogadores ativos provavelmente aumentou por causa do pessoal que já tinha o app instalado e voltou a jogar depois de ter visto tanto o Fortnite nas notícias na última semana.
Já para a Apple (e em menor grau para o Google), o real dano está na imagem da empresa. Se ela já vinha sendo atacada há tempos com acusações de monopólio e práticas anticompetitivas, a atitude irredutível de que a App Store é a única responsável direta pelo sucesso de qualquer aplicação, jogo ou empresa soa desnecessariamente descolada da realidade.
É bem verdade que a App Store gera 2x mais faturamento do que a Play Store, apesar da Play Store representar 2x mais downloads do que a App Store. Mas também é verdade que, em 2020, nem mesmo a melhor e a maior plataforma móvel do mundo seria capaz de sobreviver sem as aplicações que nós usamos todos os dias.
A Apple tem sim um poder de barganha esmagador contra cada empresa ou desenvolvedor independente que marca presença hoje na App Store. Porém, o dia em que eles resolverem se juntar (como a própria Epic Games está tentando fazer com a coalizão de insatisfeitos com a App Store), essa dinâmica de poder mudará mais rápido do que o tempo que levou para a Apple banir o Fortnite da Play Store. Só torço para que nós não sejamos os maiores prejudicados com os efeitos colaterais dessa briga.

Uma Guerra Premeditada
Crónica semanal assinada por Marcus Mendes. Aos domingos, às 20h.