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Marcus Mendes

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Existe um filme do qual eu gosto bastante (e que não vou falar o título aqui para não estragar para quem ainda não viu) que tem uma lição bem bacana: pára de achar que nasceste na época errada, e que as décadas anteriores foram bem melhores que a tua. Na verdade, tens sorte de ter nascido agora, e de ter acesso a tudo o que já aconteceu nas outras épocas.

Tendo crescido a ouvir rock clássico, eu costumava sentir essa insatisfação por não ter nascido nas épocas de Woodstock, dos festivais da Ilha de Wight, California Jam e tantos outros que marcaram as décadas do que hoje chamamos de rock clássico. Para mim, a comparação da qualidade das bandas da época com as que eram atuais quando eu era jovem beirava o injusto. Cada nova edição do Lollapalooza e até mesmo do Coachella que eu via acontecer, só me deixava mais irritado de nunca ter tido a chance de ver os “festivais de verdade” que provavelmente apenas na minha cabeça eram perfeitos.

Porém, depois de ver o filme que citei lá em cima, a minha visão mudou um pouco. Eu parei de ficar frustrado de não ter participado de Woodstock, e passei a ficar satisfeito com a ideia de que hoje tenho acesso não só a Woodstock, mas a tudo o que veio depois. Se cada festival da época proporcionou um momento único e deixou uma marca na história da música, ter acesso à somatória de todas essas marcas é muito mais valioso do que ter conseguido estar presente apenas em uma ou outra.

Mas o que isso tem a ver com a Apple? Bem, nem toda a gente sabe, mas nesta última quarta-feira teria sido o aniversário de 66 anos de Steve Jobs. Como de costume, Tim Cook tweetou uma mensagem em memória ao ex-CEO, dizendo que o legado deixado por Jobs o inspirava todos os dias.

É claro que, como de costume também, não demoraram a surgir comentários de que Tim Cook está a anos-luz de distância de Jobs, e que a Apple também sequer lembra a empresa que ela era há 10, 15 anos.

E eu concordo. Ela não é mesmo. E nem poderia ser. O mercado mudou, a tecnologia evoluiu, nossa forma de se relacionar com a tecnologia amadureceu, e absolutamente tudo que a tecnologia toca hoje em dia é bem mais complicado e mais desafiador por questões de privacidade e até mesmo de logística. A Apple de 2005 vendia uma fração pífia da quantidade de produtos que ela vende hoje. A Apple de 2005 não tinha que se preocupar com empresas como o Facebook ordenhando os nossos dados a cada oportunidade que aparece. A Apple de 2005 era, sim, muito diferente.

Mas isso não significa que ela seja pior. Eu não acompanhava tão de perto este mercado quando o iPhone ainda era apenas um rumor, mas tenho a certeza que não faltaram opiniões de que a Apple estava a perder-se, de que deveria manter o foco apenas em computadores, que fabricar um telémóvel seria uma distração desnecessária, que Steve Jobs estava maluco e precisava de ser demitido (novamente), etc. Mas lembro-me exatamente desses mesmos argumentos quando a Apple anunciou o iPad. Depois novamente com o relógio. Depois novamente com os AirPods. E agora, o carro. E os óculos. E por aí vai.

O que eu quero dizer é que enquanto todos nós sentimos terrivelmente a falta de Steve Jobs, acho que na verdade o que nós sentimos falta é da empolgação com a tecnologia da mesma forma que um adolescente sente empolgação ao descobrir a história do rock. Mas da mesma forma, temos uma sorte absurda de conseguir viver numa época em que temos acesso a tudo o que Steve Jobs ajudou a criar, e também de tudo o que veio depois dele (menos a Siri). Temos acesso a todos os vídeos de todas as impecáveis apresentações da Apple, mas teremos acesso a tudo o que virá a seguir. E se isso não é suficiente para deixar qualquer fã de tecnologia empolgado, lamento. Steve Jobs certamente estaria.

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Crónicas