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Uma reflexão incómoda no 11º aniversário da morte de Steve Jobs
Marcus Mendes

Uma reflexão incómoda no 11º aniversário da morte de Steve Jobs

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O tempo é implacável. Tive que verificar algumas vezes no meu calendário se realmente fazia dois meses que havia escrito a coluna “Sem Jobs, as TVs ainda são um Blackberry” aqui no iFeed. Particularmente o início do texto tratou de como aquele era o aniversário de quando Steve Jobs se havia afastado permanentemente do cargo de CEO da Apple, passando o bastão de forma definitiva para Tim Cook (bem, tecnicamente, informando o painel que ele recomendava que Tim Cook assumisse o cargo de forma definitiva). Em menos de dois meses, Steve Jobs viria a falecer. E foi por isso que eu precisei de verificar algumas vezes no meu calendário. Primeiro, para acreditar que dois meses haviam passado. Depois, para acreditar que já se passaram 11 anos desde o seu falecimento.

Nesta época, eu já tinha um iPhone, talvez já tivesse também o meu primeiro MacBook Pro, mas definitivamente ainda não conhecia a fundo a história de Jobs. Nem o seu lado mais positivo, e muito menos o lado mais ruim. Lembro-me de ler, nos dias após o seu falecimento, pessoas a manifestar-se com opiniões que essencialmente diziam “Vocês classificam Jobs como um génio, mas esquecem-se de como ele era uma pessoa terrível”. Ao ler a biografia escrita por Walter Isaacson, lançada apenas 19 dias após o falecimento de Jobs, eu aprendi sobre algumas dessas coisas terríveis às quais essas pessoas se referiam. A principal delas, é claro, foi a forma inacreditavelmente cruel como Jobs lidou com a existência de Lisa Brennan-Jobs, rejeitando-a como filha por anos e anos. É impossível imaginar o estrago que isso possa causar na vida e na personalidade de qualquer criança, especialmente uma criança que cresceu sob os holofotes justamente por causa dessa rejeição. Esta é possivelmente a pior coisa que Steve Jobs fez na sua curta existência, e nenhuma invenção no mundo o teria redimido deste absurdo.

O que me traz a um segundo texto que eu escrevi aqui recentemente, intitulado “Ninguém é apenas uma personagem”. À luz do lançamento do livro After Steve: How Apple Became a Trillion-Dollar Company and Lost Its Soul, do jornalista Tripp Mickle, a tese central desse meu texto apoiou-se na ideia de que nós, que acompanhamos tecnologia, estamos tão acostumados a ler e comentar sobre os executivos que movem este mundo, que eles acabam perdendo a sua humanidade e são transformados em personagens, como se fossem parte do elenco de um filme ou série de ficção. O mesmo (e talvez com maior intensidade) acontece com Jobs. Eu não sei quanto a ti, mas quanto mais eu leio, escuto, descubro e aprendo sobre ele, mais eu tenho a certeza de que ele estava tão perdido e sem respostas quanto todos nós ficamos enquanto a vida se desenrola à frente dos nossos olhos. É como a canção de Renato Russo, que diz “Você culpa seus pais por tudo. Isso é um absurdo. São crianças, como você. O que você vai ser quando você crescer?”.

Isso, é claro, não exime Jobs da culpa de toda a crueldade com Lisa Brennan-Jobs. Assim como não o exime dos artifícios maldosos e intencionalmente combativos que ele empregou ao longo de todos os anos à frente da Apple, adotando a estratégia literalmente maquiavélica de que os fins justificavam os meios e, não importa o quanto os seus funcionários sofressem durante o processo de desenvolvimento de qualquer produto, o resultado – fosse ele o iPad, o iPhone ou qualquer outro produto da Apple – era justificação mais do que suficiente para o sofrimento do processo. Acho que ao contrário da situação com Lisa Brennan-Jobs, esse quase sadismo com os funcionários foi uma coisa que Jobs empregou de forma bastante consciente, sabendo que seria eximido de culpa uma vez que esses produtos fizessem sucesso.

Digo tudo isso para defender o seguinte: assim como qualquer personalidade que já teve a sua vida esmiuçada a ponto de reduzir a sua humanidade a uma simples frase como “Ive é detalhista”,  “Cook é calculista”, Jobs também sofreu a sua vida inteira desse mal. E talvez por isso a sua trajetória seja ainda mais admirável. (Novamente, sem relevar a absoluta seriedade e forma condenável como Jobs lidou com a filha que por anos ele não reconheceu). Digo, manter o foco e os olhos no horizonte, sabendo que cada passo, cada decisão, cada etapa será fruto de uma crítica implacável, exige uma força de vontade que confesso que não sei se eu teria.

Nestes 11 anos sem Jobs, quanto mais eu leio a respeito dele, mais eu penso sobre como o seu caminho deve ter sido solitário. De um lado, entusiastas (beirando a sicofantia) o habilitavam para tudo o que ele desejasse. De outro, as suas decisões pessoais e profissionais trouxeram sofrimentos reais a pessoas que, por vezes, nunca terão as suas histórias contadas ou sequer os seus esforços reconhecidos – afinal, para muitos, os produtos da Apple são uma criação de Jobs, e de Jobs sozinho. Navegar por estes mares não deve ter sido uma tarefa fácil, pois ambas as situações poderiam muito bem servir como uma fonte não só de distração, mas de dissuasão. Mas Jobs navegou por estes mares. Errou e acertou no caminho e, por isso, ele é tanto um verdadeiro génio quanto um verdadeiro sadista. E queres saber? Talvez não exista nada mais humano do que isso.

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Opinião